Por: Nonato Reis*
A morte do jornalista Décio Sá abriu na imprensa uma espécie
de vazio existencial, que precisa ser entendido e devidamente analisado. Não me
cabe um exame minucioso da matéria, por me faltarem as credenciais necessárias,
mas suscito a reflexão, por entendê-la demasiadamente relevante. Dizer que
Décio era um repórter diferenciado é incorrer em redundância. O blog que
assinava impunha-se como leitura obrigatória, tanto para quem fazia coro com
suas opiniões como para os que dele discordavam. Passear os olhos em sua tela
era indispensável para entender como funcionam as instituições.
Seus textos eram um espelho onde o leitor, seja o cidadão
comum ou aqueles investidos de função pública, mirava a dinâmica do poder.
Antecipavam fatos, revelavam tendências, traduziam pensamento ainda em
formação. Ler Décio era compartilhar com ele o seu olhar privilegiado. Nenhum
outro jornalista sabia tanto da mecânica do governo quanto ele, porque as
fontes que alimentavam suas matérias transitam na intimidade da máquina pública.
Foi o jornalista mais influente de sua época, embora não o
maior. Não foi um líder para a sua categoria, e sim uma referência. Por seu
estilo próprio de atuar, despertava admiração e antipatia ao mesmo tempo, não
só entre os que se viam retratados em seu blog, como também entre seus colegas.
E é certo que esse traço da sua personalidade misturado ao poder explosivo de
suas abordagens suscitou ódio e o desejo de eliminá-lo, como quem limpa do
caminho um obstáculo incômodo.
Fora o dano de ordem pessoal e familiar, a morte de Décio
significou um duro golpe para a imprensa, e em especial, à mídia blogueira, que
se viu atingida naquele ponto crucial, que é a liberdade de escrever, de contar
e narrar. Sua saída de cena gerou um vácuo na produção jornalística. Também
modificou o ângulo de abordagem e a própria concepção do papel do repórter.
Um olhar pelo espaço virtual mostra que, após o assassinato,
houve, da parte dos autores de blog, uma mudança significativa no tratamento da
informação. Antes o tom era investigativo e mesclado de opiniões fortes. Hoje
virou factual, burocrático até.
Já não se vê aqueles textos que projetam luz sobre as
sombras do poder e revelam suas vísceras, nem sempre saudáveis. Marco D’Eça,
que rivalizava com Décio nesse tipo de abordagem, sofreu um abalo evidente.
Gilberto Leda, idem. Luiz Cardoso segue no mesmo tom. E de modo geral, todos
parecem cautelosos, acuados.
Mataram Décio Sá e feriram de morte a liberdade de
expressão, um bem valiosíssimo que extrapola o campo do jornalismo e se estende
aos cidadãos. Voltaire dizia: “Não concordo com uma só palavra do que dizes,
mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-la”. O rabino Davi Sobel
sintetizou ainda melhor esse conceito, ao proclamar o silêncio como “o maior de
todos os pecados”.
A liberdade de imprensa calça o direito que todo cidadão tem
de ser informado e municia-o em outro direito igualmente sagrado, que é o de se
expressar. Se não há informação, o que resta é o vazio absoluto, o isolamento
do poder em relação à sociedade e vice-versa, como se o primeiro não fosse
ferramenta do segundo. Numa projeção cósmica, é o mesmo que imaginar a Terra
girando livre no espaço, independente do Sol.
É a informação que interliga as instituições e as traz para
a planície do interesse público. Por meio da mídia, o governo presta conta de
seus atos e abre suas entranhas à investigação. O trabalho livre da imprensa
permite à opinião pública acompanhar a atuação dos poderes e cobrar o
atendimento de suas demandas.
Quando se golpeia a liberdade de imprensa é a própria
sociedade que se vê tolhida de buscar as informações do seu interesse. A morte
de Décio, neste aspecto, se projeta como um emblema para os jornalistas. Se
ele, que possuía vínculos especiais com o poder, foi vítima desse tipo de
barbárie, o que dizer daqueles que atuam sem o manto protetor do Estado?
Há uma cortina de perplexidade em torno daqueles que
trabalham com informação, um sentimento de que o arbítrio e a ignomínia pairam
acima da lei; que o Estado não tem condições de oferecer segurança para o
exercício seguro e sereno da profissão. Enquanto o assassinato de Décio Sá não
for desvendado e os envolvidos identificados e punidos, o medo e a autocensura
rondarão o trabalho da mídia e se projetarão sobre as consciências como uma
sombra perigosa. Ou a polícia dá as respostas que dela se espera, ou seguiremos
todos para o abismo.
*Jornalista
Um comentário:
Tinha Décio como uma pessoa da família. Ao acordar e ao deitar tinha sempre de olhar os seus últimos posts. Não são só os blogueiros que estão acuados. Estamos todos atônitos.E tristes, muito tristes. Espero que a policia possa elucidar esse bárbaro crime e que pelo menos isso nos faça voltar a acreditar que não estamos desamparados.
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