domingo, 13 de maio de 2012

Morte de Décio: a imprensa acuada

Por: Nonato Reis*

A morte do jornalista Décio Sá abriu na imprensa uma espécie de vazio existencial, que precisa ser entendido e devidamente analisado. Não me cabe um exame minucioso da matéria, por me faltarem as credenciais necessárias, mas suscito a reflexão, por entendê-la demasiadamente relevante. Dizer que Décio era um repórter diferenciado é incorrer em redundância. O blog que assinava impunha-se como leitura obrigatória, tanto para quem fazia coro com suas opiniões como para os que dele discordavam. Passear os olhos em sua tela era indispensável para entender como funcionam as instituições.

Seus textos eram um espelho onde o leitor, seja o cidadão comum ou aqueles investidos de função pública, mirava a dinâmica do poder. Antecipavam fatos, revelavam tendências, traduziam pensamento ainda em formação. Ler Décio era compartilhar com ele o seu olhar privilegiado. Nenhum outro jornalista sabia tanto da mecânica do governo quanto ele, porque as fontes que alimentavam suas matérias transitam na intimidade da máquina pública.

Foi o jornalista mais influente de sua época, embora não o maior. Não foi um líder para a sua categoria, e sim uma referência. Por seu estilo próprio de atuar, despertava admiração e antipatia ao mesmo tempo, não só entre os que se viam retratados em seu blog, como também entre seus colegas. E é certo que esse traço da sua personalidade misturado ao poder explosivo de suas abordagens suscitou ódio e o desejo de eliminá-lo, como quem limpa do caminho um obstáculo incômodo.

Fora o dano de ordem pessoal e familiar, a morte de Décio significou um duro golpe para a imprensa, e em especial, à mídia blogueira, que se viu atingida naquele ponto crucial, que é a liberdade de escrever, de contar e narrar. Sua saída de cena gerou um vácuo na produção jornalística. Também modificou o ângulo de abordagem e a própria concepção do papel do repórter.

Um olhar pelo espaço virtual mostra que, após o assassinato, houve, da parte dos autores de blog, uma mudança significativa no tratamento da informação. Antes o tom era investigativo e mesclado de opiniões fortes. Hoje virou factual, burocrático até.

Já não se vê aqueles textos que projetam luz sobre as sombras do poder e revelam suas vísceras, nem sempre saudáveis. Marco D’Eça, que rivalizava com Décio nesse tipo de abordagem, sofreu um abalo evidente. Gilberto Leda, idem. Luiz Cardoso segue no mesmo tom. E de modo geral, todos parecem cautelosos, acuados.

Mataram Décio Sá e feriram de morte a liberdade de expressão, um bem valiosíssimo que extrapola o campo do jornalismo e se estende aos cidadãos. Voltaire dizia: “Não concordo com uma só palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-la”. O rabino Davi Sobel sintetizou ainda melhor esse conceito, ao proclamar o silêncio como “o maior de todos os pecados”.

A liberdade de imprensa calça o direito que todo cidadão tem de ser informado e municia-o em outro direito igualmente sagrado, que é o de se expressar. Se não há informação, o que resta é o vazio absoluto, o isolamento do poder em relação à sociedade e vice-versa, como se o primeiro não fosse ferramenta do segundo. Numa projeção cósmica, é o mesmo que imaginar a Terra girando livre no espaço, independente do Sol.

É a informação que interliga as instituições e as traz para a planície do interesse público. Por meio da mídia, o governo presta conta de seus atos e abre suas entranhas à investigação. O trabalho livre da imprensa permite à opinião pública acompanhar a atuação dos poderes e cobrar o atendimento de suas demandas.

Quando se golpeia a liberdade de imprensa é a própria sociedade que se vê tolhida de buscar as informações do seu interesse. A morte de Décio, neste aspecto, se projeta como um emblema para os jornalistas. Se ele, que possuía vínculos especiais com o poder, foi vítima desse tipo de barbárie, o que dizer daqueles que atuam sem o manto protetor do Estado?

Há uma cortina de perplexidade em torno daqueles que trabalham com informação, um sentimento de que o arbítrio e a ignomínia pairam acima da lei; que o Estado não tem condições de oferecer segurança para o exercício seguro e sereno da profissão. Enquanto o assassinato de Décio Sá não for desvendado e os envolvidos identificados e punidos, o medo e a autocensura rondarão o trabalho da mídia e se projetarão sobre as consciências como uma sombra perigosa. Ou a polícia dá as respostas que dela se espera, ou seguiremos todos para o abismo.

*Jornalista

Um comentário:

Antonio Carlos disse...

Tinha Décio como uma pessoa da família. Ao acordar e ao deitar tinha sempre de olhar os seus últimos posts. Não são só os blogueiros que estão acuados. Estamos todos atônitos.E tristes, muito tristes. Espero que a policia possa elucidar esse bárbaro crime e que pelo menos isso nos faça voltar a acreditar que não estamos desamparados.