Nonato Reis
No Ibacazinho, a apenas dois quilômetros do local, a festa
mobilizava o povoado desde o início do ano, quando as pessoas começavam a fazer
economia para cobrir os gastos com indumentária e consumo. Eu era criança
ainda, mas me lembro de tudo com riqueza de detalhes. Dentro da igreja, pintada
em azul e branco, havia a chamada ladainha, com cânticos e preces, conduzida
por um pároco de Viana, que se estendia por toda a semana.
No lado externo havia um imenso largo, com barracas de pau a
pique e palha, à semelhança dos arraiais juninos de hoje, onde se comercializam
toda espécie de guloseima, das quais a minha preferia eram as broas de milho
que, de tão bem assadas, exalavam um cheirinho de bolo fresco. Tinha também um
pequeno parque de diversões, em que se destacavam as barquinhas, sempre lotadas
de crianças.
A grande atração da festa era um par de alto-falantes,
instalado na copa de duas amendoeiras imensas. Por meio deles a direção da
igreja organizava uma espécie de correio sentimental, em que as pessoas faziam
declaração de amor e ofereciam músicas para seus entes queridos. O equipamento
era também usado para mensagens de utilidade pública, com achados e perdidos.
Porém, o que mais me enchia os olhos era a orquestra, com
seus instrumentos de sopro maravilhosos, tocando dobrados e cânticos
religiosos. Meu avô, que foi um músico brilhante, passava horas comigo, na
frente da orquestra, identificando os instrumentos e explicando a função de
cada um dentro da orquestra. O que mais me fascina era o Tuba, pelo seu tamanho
e o som que emitia, à semelhança de um surdo, fazendo a marcação das músicas.
Minha mãe tinha extremo cuidado para que eu não me perdesse
dela, sempre me conduzindo agarrada em meu braço. Mas a minha curiosidade era
tanta que um dia driblei a sua vigilância e desapareci em meio à multidão. Só
fui resgatado muito tempo depois, após várias mensagens de apelo nos
alto-falantes. “Atenção, quem encontrou um garoto lorinho, meio sarará, entre
sete e oito anos, trajando camisa de listras, calça azul marinho e sandálias
brancas, favor trazê-lo aqui no estúdio. Seus pais o aguardam aflitos”.
O tempo passou e a festa foi perdendo o glamour de antes,
até desaparecer por completo. Anos depois ressurgiu, porém sem a mesma força da
época inicial. Eu já havia me transferido para São Luís, onde cursava o ensino
médio. Certa vez, em férias no interior, fui ver a festa e dei de cara com uma
menina que me fez os olhos brilhar. Chamava-se Doralice. Tinha o corpo
gracioso, os cabelos compridos, a pele morena e um gênio danado. Estava ali na
companhia dos pais, que possuíam uma barraca, onde vendiam cerveja, mingau e
tira-gosto.
Durante toda a semana em que se realizaram os festejos de
Nazaré eu tentei conquistar a garota, mas a concorrência era pesada. Todo mundo
queria ficar com a menina, e ela esnobava um por um. Eu, sempre metido a poeta,
até escrevi uns versos melosos e lhes dediquei, ao que ela reagiu com desprezo.
“Não pense que você vai me conquistar com essas baboseiras. Conheço bem esse
teu jeito de agir”.
Aquilo me doeu na alma. Enfurecido, fiquei maquinando um
jeito de ir à forra. Um dia, lá pelo meio-dia, o sol a pino, eu me encontrava
na barraca dos pais da garota, junto com mais outros colegas. Dei uma volta por
trás do barraco e deparei com uma enorme panela de mocotó, que fervia ao ar
livre. Olhei ao redor e vi Zeca, parceiro de diabruras, que vinha logo atrás de
mim. Fiz um leve gesto com a cabeça e ele entendeu na hora. Peguei uma vara,
que estava encostada na parede lateral da barraca, e enfiei nas duas alças de
alumínio da panela. Eu segurei numa extremidade, ele na outra, e assim carregamos
a panela com mocotó para dentro do mato.
Depois chamamos os outros parceiros e fizemos o banquete,
regado a meia dúzia de cervejas, compradas honestamente. Não demorou e ouvimos
alguém gritar: “pega ladrão!”, seguido de latidos de cães que pareciam adentrando
o matagal. A turma vazou! Na pressa de fugir, meu pé tocou a alça da panela e
ambos emborcamos no chão. Só deu tempo de subir em um pé de araribeira nova
que, com o meu peso, balançava mais do que cuia de cego. Para a minha sorte, os
cachorros não eram bons caçadores, pois que passaram batidos, sem se dar conta
da panela e de mim.
Dois dias depois, vendo o desespero da mãe da garota, por
perder uma panela que havia sido presente do seu falecido avô, retornei ao
local do crime e resgatei o utensílio que, depois de lavado com sabão, foi
entregue brilhando a sua dona. A mãe da garota, que de nada desconfiou, ficou
imensamente agradecida e passou a me tratar como filho. Daquele dia em diante
passei a frequentar sua casa. Era presença certa no almoço e no jantar. A
menina, talvez farta da minha insistência, e também por pressão da própria mãe,
que passou a ver em mim o genro que sempre sonhara, decidiu me aceitar como
namorado, não sem antes apontar o dedo no meu nariz. “Vou te dar uma chance,
porque minha mãe gosta de ti. Mas que tu tem um jeito de safado, isso tem!”.
Jornalista e escreve para o Jornal Pequeno aos domingos
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