segunda-feira, 28 de outubro de 2013

O Pesqueiro do Baixinho


Nonato Reis

O lugar tinha algo de irreal. Recebera essa denominação em face de um registro trágico envolvendo um pescador, que habitava as redondezas do Ibacazinho, o lugarejo que me viu nascer e crescer. Certo dia, Brazilino, que tinha pouco mais de 1,5 metro de altura, saiu de casa para fazer compras em Viana, e desapareceu. Dias depois encontraram o corpo flutuando entre araribeiras inundadas pelas cheias, em meio a uma nuvem de abutres, que faziam festa com a carne em decomposição.

Um grupo de moradores, entre eles o meu pai e mais três parentes entornaram algumas garrafas de cachaça e decidiram dar ao “Baixinho”, como depois ficou conhecido, um sepultamento digno. Amarrado por uma corda de vaqueiro, presa à popa de uma canoa, o corpo viajou pelo rio Maracu e aportou em uma enseada, próxima ao cemitério do lugar. Ali, em cova rasa, aberta às pressas, selaram o destino do cadáver.

O mau cheiro de carniça, porém, provocou estragos. Um tio meu, responsável por laçar o cadáver com a corda, passou mal, vomitou e ardeu de febre. Meu pai quase morreu. Encharcado de álcool e daquele odor medonho parecia envenenado. Branco feito cera, dormiu um dia inteiro. Só despertou à noite, a cabeça rodando, o corpo todo dolorido, completamente enfastiado. Demorou muito para se recuperar.

O certo é que, a partir daquele dia fatídico, o lugar que recebera o corpo de Brazilino passou a chamar-se de “O pesqueiro do Baixinho”. No inverno a água invadia a enseada, em meio a árvores de médio porte, formando uma passagem estreita, que conduzia até o túmulo. Era o local perfeito para a pesca de bagrinho, um peixe de couro, que mede não mais que um palmo de comprimento, muito apreciado na região da Baixada. O bagrinho pode ser pescado de tarrafa, no verão, durante o dia; ou de anzol, no inverno, à noite, no período em que a lua não é vista no céu. Quanto mais escuridão, melhor para a captura do peixe.

O Pesqueiro do Baixinho, porém, se tornaria um lugar praticamente inacessível. Quase ninguém tinha coragem de adentrar àquela enseada, e os poucos que se aventuravam chegar até lá, arrependiam-se para o resto da vida. Sobre o pesqueiro corriam estórias de gelar os nervos. Uma noite dois primos meus, Roberval e João Buti (recebeu esse apelido porque quando menino, se lhe perguntavam onde havia colocado determinado objeto, ele respondia: “eu buti ali”), se armaram de coragem e adentraram o pesqueiro. João na popa da canoa, Roberval no banco do meio.

Mal iniciaram a pescaria os bagrinhos chegaram aos cardumes. Bastava jogar a isca e eles se deixavam fisgar. A alegria da mesa farta, porém, não demorou. Começaram a ouvir miados de gatos, que vinham da sepultura do Baixinho, que evoluiu para uma briga renhida entre os animais. Depois o que eram gatos se transformou em touros selvagens que pareciam se devorar. No auge do duelo sangrento, uma voz rasgou a noite como um grito de dor: “Não me mata, desgraçado!”.

João, que era o menos corajoso, segurou o galho de uma árvore e deu um impulso violento, que fez a canoa dá um salto para fora do pesqueiro. No impacto, outro galho de árvore alcançou o peito de Roberval e ele se estatelou no fundo da canoa, gritando de dor e de medo. João nem quis saber. Continuou remando com todas as forças até sair de vez daquela gruta assombrada. Alcançaram o leito do rio e olharam para trás. Uma onda gigante acompanhava a embarcação, fazendo-a balançar como se estivesse em alto mar.

Pescar no reduto do Baixinho não era para qualquer um. Apenas o meu pai, um primo e dois tios tinham coragem para chegar até lá, e ainda assim retornavam, fazendo relatos assustadores sobre a experiência. Certa vez meu pai chegou ao local de madrugada. Mal começou a jogar o anzol, uma brisa começou a soprar de forma esquisita, e de repente se transformou numa tempestade de rachar árvores ao meio. Teve que sair às pressas para salvar a própria vida.

Atanásio era um sujeito destemido. Desses que não se abalam por nada. O Pesqueiro do Baixinho era o seu reduto preferido. Sempre que ia lá, algo o incomodava, mas ele aguentava firme e só saía quando queria. Um dia, porém, colocaram a sua coragem à prova. “Fizeram de tudo para que eu saísse de lá, mas eu dizia, ‘daqui só saio quando eu quiser’”. Chegou uma hora, a situação ficou insustentável. Dois homens, à semelhança de albinos, irromperam das águas, embarcaram na canoa e pressionaram as bordas da embarcação, para que ela naufragasse.

Atanásio ralhou com os fantasmas. “Deixem de presepadas que eu não estou aqui fazendo graça”. Mas a água começou a invadir a embarcação e ele se viu em perigo. Então ergueu a voz e afrontou as aparições. “Vocês me respeitem. Sou um pai de família, luto para sobreviver. Criem vergonha e deixem a minha canoa em paz!”. Ato contínuo os espectros desapareceram e Atanásio pode terminar a sua pescaria em segurança. Porém a partir dali, nunca mais o pesqueiro seria visitado, seja por vivos ou mortos. Simplesmente sumiu. Durante o dia a gruta podia ser avistada facilmente. À noite tudo era mato fechado e silêncio.


*Jornalista e escreve para o Jornal Pequeno aos domingos

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