Nonato Reis
O lugar tinha algo de irreal. Recebera essa denominação em
face de um registro trágico envolvendo um pescador, que habitava as redondezas
do Ibacazinho, o lugarejo que me viu nascer e crescer. Certo dia, Brazilino,
que tinha pouco mais de 1,5 metro de altura, saiu de casa para fazer compras em
Viana, e desapareceu. Dias depois encontraram o corpo flutuando entre
araribeiras inundadas pelas cheias, em meio a uma nuvem de abutres, que faziam
festa com a carne em decomposição.
Um grupo de moradores, entre eles o meu pai e mais três
parentes entornaram algumas garrafas de cachaça e decidiram dar ao “Baixinho”,
como depois ficou conhecido, um sepultamento digno. Amarrado por uma corda de
vaqueiro, presa à popa de uma canoa, o corpo viajou pelo rio Maracu e aportou
em uma enseada, próxima ao cemitério do lugar. Ali, em cova rasa, aberta às
pressas, selaram o destino do cadáver.
O mau cheiro de carniça, porém, provocou estragos. Um tio
meu, responsável por laçar o cadáver com a corda, passou mal, vomitou e ardeu de
febre. Meu pai quase morreu. Encharcado de álcool e daquele odor medonho
parecia envenenado. Branco feito cera, dormiu um dia inteiro. Só despertou à
noite, a cabeça rodando, o corpo todo dolorido, completamente enfastiado.
Demorou muito para se recuperar.
O certo é que, a partir daquele dia fatídico, o lugar que
recebera o corpo de Brazilino passou a chamar-se de “O pesqueiro do Baixinho”.
No inverno a água invadia a enseada, em meio a árvores de médio porte, formando
uma passagem estreita, que conduzia até o túmulo. Era o local perfeito para a
pesca de bagrinho, um peixe de couro, que mede não mais que um palmo de
comprimento, muito apreciado na região da Baixada. O bagrinho pode ser pescado
de tarrafa, no verão, durante o dia; ou de anzol, no inverno, à noite, no
período em que a lua não é vista no céu. Quanto mais escuridão, melhor para a
captura do peixe.
O Pesqueiro do Baixinho, porém, se tornaria um lugar
praticamente inacessível. Quase ninguém tinha coragem de adentrar àquela
enseada, e os poucos que se aventuravam chegar até lá, arrependiam-se para o
resto da vida. Sobre o pesqueiro corriam estórias de gelar os nervos. Uma noite
dois primos meus, Roberval e João Buti (recebeu esse apelido porque quando
menino, se lhe perguntavam onde havia colocado determinado objeto, ele
respondia: “eu buti ali”), se armaram de coragem e adentraram o pesqueiro. João
na popa da canoa, Roberval no banco do meio.
Mal iniciaram a pescaria os bagrinhos chegaram aos cardumes.
Bastava jogar a isca e eles se deixavam fisgar. A alegria da mesa farta, porém,
não demorou. Começaram a ouvir miados de gatos, que vinham da sepultura do
Baixinho, que evoluiu para uma briga renhida entre os animais. Depois o que
eram gatos se transformou em touros selvagens que pareciam se devorar. No auge
do duelo sangrento, uma voz rasgou a noite como um grito de dor: “Não me mata,
desgraçado!”.
João, que era o menos corajoso, segurou o galho de uma
árvore e deu um impulso violento, que fez a canoa dá um salto para fora do
pesqueiro. No impacto, outro galho de árvore alcançou o peito de Roberval e ele
se estatelou no fundo da canoa, gritando de dor e de medo. João nem quis saber.
Continuou remando com todas as forças até sair de vez daquela gruta assombrada.
Alcançaram o leito do rio e olharam para trás. Uma onda gigante acompanhava a
embarcação, fazendo-a balançar como se estivesse em alto mar.
Pescar no reduto do Baixinho não era para qualquer um.
Apenas o meu pai, um primo e dois tios tinham coragem para chegar até lá, e
ainda assim retornavam, fazendo relatos assustadores sobre a experiência. Certa
vez meu pai chegou ao local de madrugada. Mal começou a jogar o anzol, uma
brisa começou a soprar de forma esquisita, e de repente se transformou numa
tempestade de rachar árvores ao meio. Teve que sair às pressas para salvar a
própria vida.
Atanásio era um sujeito destemido. Desses que não se abalam
por nada. O Pesqueiro do Baixinho era o seu reduto preferido. Sempre que ia lá,
algo o incomodava, mas ele aguentava firme e só saía quando queria. Um dia,
porém, colocaram a sua coragem à prova. “Fizeram de tudo para que eu saísse de
lá, mas eu dizia, ‘daqui só saio quando eu quiser’”. Chegou uma hora, a
situação ficou insustentável. Dois homens, à semelhança de albinos, irromperam
das águas, embarcaram na canoa e pressionaram as bordas da embarcação, para que
ela naufragasse.
Atanásio ralhou com os fantasmas. “Deixem de presepadas que
eu não estou aqui fazendo graça”. Mas a água começou a invadir a embarcação e
ele se viu em perigo. Então ergueu a voz e afrontou as aparições. “Vocês me
respeitem. Sou um pai de família, luto para sobreviver. Criem vergonha e deixem
a minha canoa em paz!”. Ato contínuo os espectros desapareceram e Atanásio pode
terminar a sua pescaria em segurança. Porém a partir dali, nunca mais o
pesqueiro seria visitado, seja por vivos ou mortos. Simplesmente sumiu. Durante
o dia a gruta podia ser avistada facilmente. À noite tudo era mato fechado e
silêncio.
*Jornalista e escreve para o Jornal Pequeno aos domingos
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