Por: Nonato Reis
Era sacro! Ao escurecer do dia 19 de março, nos campos do
Muricituba, a molecada ganhava o mato, reunia-se em volta de uma grande árvore,
conferia os instrumentos de som e colocava em pauta a votação dos indicados. Os
eleitos, geralmente pessoas idosas e rabugentas, naquela noite não teriam sono
tranquilo. Quando caía a madrugada, alguém que se autodenominava Anjo Gabriel,
chegava à janela da vítima, anunciava a sua morte, e dava início à leitura do
testamento, sem esquecer pormenores como dívidas e objetos de estimação ou de
uso pessoal.
Em seguida a “orquestra”, formada de serrote, lata velha,
rabeca, carrapeta, galo, gato, porco e jumento iniciava o dobrado. Não havia
alma que não fosse resgatada das profundezas do sono para aquele ruído
ensurdecedor. Na maioria das vezes o infeliz, do sono desperta e alvo da
‘homenagem’, reagia mal, lançava mão de uma espingarda, atirava para o alto, ou
tentava acertar as contas no braço com os malfeitores.
No Muricituba, vilarejo de Viana, a brincadeira de Serra
Velho (em Portugal, diz-se “Serrar a Velha”) acabava sempre em confusão. Os
‘serrados” não se conformavam em se verem alvo de chacota e geralmente iam até
a casa dos brincantes tirar satisfações com os pais deles. Certa vez, a eleição
recaiu sobre João de Anastácia, um sujeito de olhar enfezado, que falava como se
estivesse chorando.
Gabriel e sua trupe bateram à casa dele à meia-noite em
ponto. “João, acorda! Chegou a tua hora”. Silêncio. “Vim anunciar a tua morte.
E fazer o teu testamento”. Sossego absoluto. “Tua tarrafa fica para Zezinho, o
teu filho caçula. A enxada, para Apolônio, o mais velho. A calça de brim
encardida deixa com Raimunda, a filha do meio, pra ela fazer uma sunga. A
espingarda velha será útil a Dadá, tua mulher, para caçar passarinho e matar a
fome”.
Terminado o testamento, o anjo se dirigiu ao grupo. “Não há
mais nada a partilhar?”. Diante da resposta negativa, bradou. “Então, amigo
João, aguenta o corpo que lá vai...”. Não deu nem tempo de o serrote tocar a
lata. A voz de João surgiu aguda, a dois metros do grupo. “Lá vai é facão no
lombo de vocês, seus demônios!”.
Foi gente correndo pra todo lado e o facão de João estalando
nas costas da molecada. Na ânsia para evitar a arma escorreguei numa grota de
dois metros de altura. Machuquei o braço direito, tive escoriações pelo corpo.
Só consegui sair do buraco no dia seguinte, em meio a risos, lamentos e
censuras.
Pior foi quando a eleição recaiu sobre Joana de Santa. Ela
vivia sozinha com um filho, deficiente físico. Era reservada e calada. Quase
não sorria. A única vez em que alguém tentou ‘serrá-la’ quase foi alvejado com
um tiro de garrucha. O grupo decidiu que ela seria a bola da vez. Mas se
arrependeu da graça. Em plena leitura do testamento, o caldo engrossou, ou
melhor, entornou.
Na hora em que o anjo quis saber com quem ficaria o penico
de esmalte dourado, ela se antecipou, abriu a janela e anunciou. “Fica contigo,
seu moleque safado!”. E derramou na cabeça de Gabriel o apetrecho cheio de
urina de vários dias, misturada com dentes de alho, cebola e pimenta do reino.
O mau cheiro se prolongou na cabeça do anjo por mais de uma
semana. A namorada cortou relações com ele. Os amigos o mantinham a distância.
Os pais o separaram da casa grande. Armaram uma rede no fundo do quintal, na
casinha do cachorro, e o deixaram lá com o animal, entregue a moscas e pulgas,
até que o fedor desaparecesse. Desde então, Serrar Velho nunca mais. Foi santo
remédio.
*Jornalista
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