*Arnaldo Jabor - O Estado de S.Paulo
Antigamente tínhamos um norte, ilusório ou não. Hoje,
vivemos numa permanente incerteza que tentamos deslindar com mecanismos
antigos. O colunista ou comentarista se empoleira num pódio de opiniões e fica
deitando regras. Como eu, hoje em crise.
E aí? Qual é essa de um sujeito ficar dizendo o que acha
certo ou errado na Paisagem? Fico falando na TV,escrevendo nos jornais,
tentando ser relevante, tentando salvar alguma coisa que nem sei o que é.
Salvar o quê?
Antigamente, era mole. O mal era o capitalismo e o bem era o
socialismo. Agora,os intelectuais, caridosos de carteirinha, cafetões da
miséria, santos oportunistas estão em pânico, pois não conseguem pensar sem
almejar alguma forma de 'totalidade'.
Mas,isso acabou. As coisas estão controlando os homens. As
coisas tomaram o poder e nós, seus escravos, criamos nomes: 'neoliberalismo,
esquerdismo, nacionalismo', um reducionismo apressado para nos dar a ilusão de
controle. Mas, hoje, a marcha das coisas zumbis já começou.
Diante dessa invasão dos vampiros de mercado e da
tecnociência incontrolável, o pensamento ‘progressista’ ficou lamentoso,
tristinho de tanto absurdo, tanto na guerra internacional como no caos
brasileiro. De que adiantam os queixumes?Como falar em democracia com
muçulmanos analfabetos que desde o século 8.º batem a cabeça nas pedras para
exorcizar qualquer ‘perigo’de liberdade, repetindo mantras do Corão, enquanto,
do outro lado, os caretas republicanos competem para ver quem é mais
reacionário e escolhem esse Romney a repetir mantras da Bíblia fundamentalista?
É terrível ver a vitória das religiões sobre a razão, é feio ver o século 21
começando na Idade Média, com bilhões de seres dominados por Alá, combatidos
pelo Deus da indústria de armas.O homem bomba matou o Eu.
Surge no horizonte da crise uma nova 'razão irracional' (se
é que o oximoro é possível), pois vemos a direita crescer no mundo, junto a uma
esquerda cada vez mais neoestalinista, uma razão burra e organizada,
fascistoide, principalmente na América Latina.
O problema é que não conseguimos abrir mão do
"eu", do desejo de ser um profeta ou professor ou comandante, tanto
no pensamento, na política e nas artes.E,no entanto,vemos que o mundo se move
como uma máquina própria.Os indivíduos viraram apenas uma peça ínfima que às
vezes dispara novas rotas para as catástrofes. O "eu" virou um
privilégio para poucos. Hitler foi um "eu" que encarnou o rancor
nacional da Alemanha. Décadas depois, Osama foi um novo "eu" para
atacar a modernização do Ocidente, supremo pavor (e desejo) do Islã. Do outro
lado, Bush arrasou a América e o mundo. Dois psicopatas mudaram o tempo.
Achávamos que tudo se moveria pelas grandes forças socioeconômicas e acabamos
mudados por um maluco religioso e um imbecil alcoólatra.O mal difuso elege
apenas seus operadores.
E no meio,entreoindivíduoeamassa, respira a liberdade como
um bicho sem dono, a 'liberdade' - essa coisa que nos provoca tanta angústia.
Que liberdade? Contra um mal teórico ou a favor de um bem inapreensível? A
único consolo que resta ao "eu" é o narcisismo como moda social, a
acumulação de riquezas, charmes e ilusões. É o nascimento do eu-boçal. Seria o
eu-burguês, ou eu-Miami. Ou então, o 'eu' como uma espécie de prêmio para quem
furar o muro do anonimato, para quem conseguir criar um eu fantasioso, um eu
excêntrico, um eu que mostra a bunda,um eu de silicone ou um eu-big brother. O
indivíduo está cada vez mais ridículo.
Quem fala debaixo dessas duas letrinhas: o "Eu"?
Quem foi que inventou essa voz, esse brado que soa de dentro de um organismo, a
partir do qual o mundo é contemplado, o que é essa voz cheia de certezas, quem
são esses corpos opinativos que se pensam diferentes, mas são produzidos em
série? Eles pensam:" Eu quero ser inconformista como todo mundo..." O
eu dos intelectuais está humilhado...
Há um grande desânimo de pensar, de escrever,de análises
sobre algo morto e inevitável e que já foi decidido. Refletir, fazer obras de
arte, pra Quê? Sem alguma esperança não há filosofia.
O eu está sem orgulho, inútil. E aí,volta minha crise do
início deste artigo deprimido (quem aguentou ler até agora?): como analisar
racionalmente um país num tempo em que ninguém comanda? Não dá. Tenho de
utilizar novos conceitos para isso. Tenho de me conformar que não há mais
solução para muitos problemas. Nem para o terrorismo,nem para a miséria e seus
crimes. Nem na guerra, nem no tráfico de São Paulo, por exemplo. Está tudo
incorporado ao arquivo morto da História.Acabou o sonho de um futuro harmônico.
O século 21 vai ser uma bosta mesmo.
*Cineasta e articulista
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