Bumba-meu-boi sob fogo cruzado
Em Viana, uma tradição singular do Bumba-boi resiste por mais de um século.
Em Viana, uma tradição singular do Bumba-boi resiste por mais de um século.
É na noite de 28 de junho, véspera de São Pedro, que a
cidade de Viana se torna palco de um inusitado e interessante espetáculo,
envolvendo a figura do animal tão festejado no mês. Conhecida pela população
local como “passar fogo no boi”, a farra anual consiste em fazer chover uma
verdadeira torrente de fogos sobre o dorso do animal, enquanto todos dançam sob
o ritmo frenético das matracas.
Não se sabe ao certo a origem da brincadeira. Difícil também
definir quando tudo começou. Os registros mais antigos sobre essa tradição do
Bumba-boi vianense remontam ao início do século passado. O médico e escritor
Salvio Mendonça (1892-1970), no livro de memórias “História de um Menino
Pobre,” assim se refere a essa peculiaridade folclórica de sua terra natal:
“Em Viana, o Bumba-meu-boi tinha outro apreço, era a
passagem do boi pelo Canto Grande, entre saraivada de busca-pés, foguetes,
carretilhas e bombas, de fabricação do velho Rocha. O boi mais famoso de Viana
era o do Valentim. Eram feitas as apostas para a passagem do boi pelo Canto
Grande, cruzamento das Ruas Grande e Padre Hemetério. O valor da aposta era um
barril de cachaça. O boi vinha completamente molhado para resistir ao fogo. Os
negros, também molhados, vinham descalços, para facilidade nos pulos. Os rapazes
se ajuntavam nas esquinas, municiados, e quando o boi do Valentim chegava ao
Canto Grande, era cercado pela frente, retaguarda e lados, entre o estrondar
das bombas, foguetes, busca-pés e carretilhas, o que constituía bombardeio de
muitas horas. Se o grupo do bumba-meu-boi resistia até se esgotarem os fogos,
levava o barril de cachaça. No fim da brincadeira, ficava sempre queimado algum
dos batalhadores.”
Travassos Furtado (1912-1990), outro famoso memorialista
vianense, também descreve o pitoresco folguedo que tanto encantou sua
juventude.
“Após percorrer grande parte da cidade, dançando à porta dos
homens de maior projeção de Viana, o boi se prepara, agora, para descer a Rua
Grande, a fim de aceitar o desafio dos lançadores de fogos. Antes, porém, retiram-lhe
o rico lombo, e assim todo encharcado de água, inicia a caminhada em direção a
um trecho estreito daquela rua, entre o chamado Canto Grande e a pequena praça
do antigo mercado. Já a essa altura a turma do fogo estava preparada,
aguardando apenas o momento de entrar em ação.
Começa, então, a travessia perigosa. Protegido por homens
corajosos, que se lançam à frente, aos gritos estridentes, o boi desce
vagarosamente, entrando aos poucos, na zona de fogo. E a grande batalha tem
início, sob a expectativa da população.
Espetáculo impressionante. Uma chuva de foguetes,
carretilhas e busca-pés, com estouros aterradores, cai sobre os brincantes,
partindo de todos os lados. O boi e os vaqueiros ficam durante alguns minutos
dentro de um verdadeiro círculo de fogo. A luta dura, às vezes, mais de uma
hora, e só termina, realmente, quando se esgota a munição. Mas a vitória
pertence, quase sempre, ao boi.”
Com o passar dos anos, a brincadeira trocou o antigo Canto
Grande por um trecho estratégico da Rua Dom Hamleto de Angelis. Antes, porém,
há uma concentração na Praça de São Benedito, marcada para as 20 horas. À
meia-noite, seguido por extensa fileira humana, o boi deixa a praça para descer
a Rua Grande. No ponto de estrangulamento já o aguarda grande multidão, ansiosa
por começar a batalha de bombas, estrepa-moleques, besouros e carretilhas (os
busca-pés foram proibidos). São quase três horas de queima de fogos, estouros e
muita fumaceira.
Por sua vez, de tanto ser queimado, o boi também adquiriu
uma certa imunidade. Hoje, fabricado especialmente para esse fim, possui uma
armação mais resistente ao calor. E em vez de um só, são quatro os brincantes
que se revezam embaixo dele, enquanto dura a árdua batalha.
Uma vantagem do boi vianense é que o modelo utilizado na
Baixada é mais corpulento do que o protótipo adotado em São Luís ou outras
regiões do Estado. Esse detalhe favorece maior proteção, na hora do fogaréu,
para quem o leva nas costas. Embora continue entrando na zona de fogo
previamente encharcado, o boi também conta, atualmente, com a benevolência de
seus algozes. Além de lhe permitirem novos banhos de balde no meio do percurso,
em determinados momentos entra em cena um secretário para abanar sua face com
uma toalha, evitando assim que a fumaça o sufoque completamente.
José Ribamar Vieira (59 anos), o popular Catarrinho, é um
dos heróis e principais incentivadores da festa. Encarregado de encomendar a
munição de fogos aos fabricantes, ele ainda dança debaixo do boi há vários
anos. Apesar das queimaduras inevitáveis do ofício, diz ter o maior prazer em
participar do folguedo: “É um costume muito antigo. Meu avô, Raimundo Paixão,
era patrão do boi e não perdia a brincadeira. Recebo cem reais pelo trabalho,
mas faço tudo de graça se preciso for, para que essa tradição não desapareça
nunca do nosso São João”- afirma entusiasmado.
A julgar pelo crescente número de adeptos da folia junina em
Viana, nos últimos anos, Catarrinho pode ficar despreocupado. Em 2003,
incluindo as caravanas vindas dos municípios vizinhos, estimou-se a presença de
5.000 brincantes e foram queimadas duzentas dúzias de carretilhas. Para este
ano, os organizadores já encomendaram quinhentas dúzias. A farra de passar fogo
no boi, no próximo dia 28, portanto, promete esquentar!
Luiz Alexandre Raposo (da Academia Vianense de Letras)
Publicado no jornal “O Estado do Maranhão” (Caderno
Alternativo), edição de 16.06.2004.
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