Entre a terra de Utopia e a ilha da Fantasia, se encontra a
península de Ironia. Ela avança sobre o mar de Ignorância, onde ondas de
sandices vêm bater nos rochedos debochados. Esse choque produz uma maresia
carregada de não se sabe quais nutrientes, que se depositam sabe-se lá como nas
planícies irônicas. O resultado dessa luta do rochedo contra o mar não é um
samba-enredo mas uma verdejante horta nas regiões irrigadas pelas gotículas desinstruídas
do Oceano Analfabético.
O resultado é que em Ironia não falta comida. Ao contrário,
a fartura é tanta, as safras descomunais, que as autoridades priorizam o
abastecimento, em detrimento da educação. O resultado é que, em vez de escolas,
Ironia tem redes oficiais de restaurantes e lancherias. E o povo é obrigado a
freqüentá-las.
Assim, o ano-letivo se passa não por entre classes e sim em
meio a mesas e fogões. O corpo docente é formado por cozinheiras e
mestres-cucas, e o reitor da universidade é um gourmet – todos, vai se ver,
autodidatas. E o currículo é feito de noções culinárias e nutricionais. O que
se ensina em Ironia é como se saciar, como engordar. O que se aprende é como
dar conta da produção hortifrutigranjeira. Tão ocupados ficam nisso que não há
tempo nem pro abc. O resultado é que, nessa terra em que até sem plantar tudo
dá, o povo é fofinho e corado mas padece de anemia vocabular e há surtos
constantes de discordância verbal.
Por isso o irônico governo instituiu o programa Bolsa-Palavra,
para atender aos desassistidos intelectualmente. Isto é, todos. O Bolsa-Palavra
contempla a população em idade escolar, desde que as famílias comprovem que não
faltam às refeições diárias. O que é controlado em pesagens nos postos de
distribuição. É que quanto mais nutridos, mais palavras recebem. Daí as
tentativas de fraude: é comum alunos com nabos e pepinos nos bolsos diante da
balança. Gramas por fonemas, pretende o golpe da criançada ávida por polissílabos.
Cada Bolsa-Palavra vem com porções básicas de vocabulário,
que devem prover os índices mínimos requeridos pela OMS, a Organização Mundial
de Sílabas. Mas como em Ironia é escassa a boa expressão, o programa apresenta
falhas: palavras com grafia errada, pronúncia incorreta, falta de acentuação.
Também se aponta desvio de verbos, que vão, justamente, para a alta cúpula dos
comensais administrativos. O resultado é que o Bolsa-Palavra continua
ironizado.
(Texto originalmente publicado no jornal Extra Classe, em
out/2007)
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