segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

"Cidade de Viana", uma lição de vida

* Nonato Reis

Quase todo estudante de jornalismo sonha em um dia trabalhar em um veículo de comunicação desatrelado dos poderes político e econômico. Poder dizer que o que pensa sem o risco de ser censurado. Em outras palavras, ser dono da sua coincidência, um legitimo porta-voz dos deserdados e oprimidos. Exercer o direito de liberdade e expressão, incurso na lei, de forma ampla, geral e irrestrita.

Em 1989, com algumas passagens por jornais e revistas de São Luís no currículo, eu já me acostumara à dura realidade das redações, onde não raro os textos dos repórteres sofriam profundas alterações para moldarem-se aos interesses nem sempre nobres dos patrões. Perdera o sonho acadêmico de liberdade, porém não a esperança. E assim ocorreu-me a ideia de fundar um jornal em Viana, minha cidade natal, da forma como imaginara.

Logicamente, era um projeto ousado sob todos os aspectos. Primeiro não havia logística, sequer um espaço físico para abrigar a empresa. Também não tinha o tempo necessário. À época, eu chefiava a redação do Jornal de Hoje, que me obrigava a jornadas de trabalho desumanas. Não possuía equipe: era eu e mais eu. E, o mais importante: faltava-me os meios materiais para cobrir os custos da empreitada.

Dizem que diante dos obstáculos nossas forças se multiplicam e aquilo nos parece impossível vai assumindo novos contornos até se encaixar nos limites do mundo real. A questão do espaço físico foi resolvida, sediando o jornal em São Luís, já que minha vida estava organizada aqui. Logo surgiram companheiros dispostos a participar do projeto. Primeiro veio Josy Ribeiro, depois Helciane Araújo, repórteres do JH. Padre Eider, maior lenda viva da cidade, aderiu em seguida.

Com ele, e por indicação sua, vieram vianense ilustres, sediados em São Luís, no Rio de Janeiro e em Brasília. Restava contornar a questão financeira. Decidiu-se que os custos seriam bancados por meio de contribuições individuais (em outras palavras, doações) e por meio da venda avulsa do jornal, fixada em um valor símbolo, para que a comunidade, principal beneficiaria não se visse privada do acesso à informação.

Assim surgiu o jornal Cidade de Viana, livre e independente em relação às classes dominantes: comprometido com o interesse público. No editorial de capa da primeira edição, que circulou em maio de 1989, escrevi. “ (...) O Cidade de Viana não quer ser governo nem oposição, mas a própria comunidade (...), uma trincheira dos interesses do povo vianense. (...) a única pretensão é ser um veículo a serviço da população”.

A primeira edição esgotou-se rapidamente e já no segundo número a lista de colaboradores dispostos a cobrir os custos do jornal passava de 100. Uma coluna em especial, “A língua ferina de Jeca Tatu”, caiu no gosto dos leitores. Eram abordagens feitas num tom ácido e supostamente escrita por alguém com pouca formação escolar, usando o mesmo linguajar do caboclo da Baixada, porém dotado de um senso crítico aguçado. Na nota de abertura do primeiro número, o autor advertia: “Olha seu moço, não sou letrado nem carrego esses canudos de escola, mas tenho olho bom pra enxergar safadeza”.

Os textos informativos eram escritos em linguagem objetiva, sem mescla de opinião. Lembro-me de uma entrevista com o então prefeito Djalma Campos que, em dado momento, defendia a volta dos militares ao poder, como forma de pôr ordem na anarquia que, segundo ele, imperava no País. O jornal publicou a matéria na integra, respeitando opinião do entrevistado.

Porém, em editorial de capa, condenou com veemência o que classificou como “ideia infeliz”. E arrematou: “ Ao demonstrar a sua descrença na capacidade de um governo civil, eleito democraticamente pelo povo, o prefeito Djalma Campos admite-se por extensão incompetente (...), porque também ele (um civil) foi guindado ao poder pelo instrumento do voto direto”.

Não foi fácil manter um jornal que tratava poderosos e cidadãs humildes como iguais. No começo a reação do próprio leitor foi de incredulidade. Mais do que criticar ou apoiar o jornal, desejava-se saber a quem de fato ele servia. Qual político ou empresário o mantinha. O que se pretendia, afinal? Essas perguntas permaneceram sem respostas durante o tempo em que durou o “Cidade de Viana” e a tal adesão que eu buscava da comunidade jamais foi alcançada, culpa que atribuo à incapacidade do autor em superar obstáculos.

Após um ano de circulação, enfrentando problemas de distribuição, dinheiro e periodicidade, entendi que era hora de parar. Os desafios eram grandes e a minha disponibilidade decrescente. No auge da crise cheguei a ser procurado por um grupo empresarial, interessado em investir no projeto com a condição de editar a linha editorial do jornal. Rechacei.

Aceitar essa proposta, seria negar a própria essência do projeto. Ficou na lição de que é possível fazer um jornal livre de vinculação com o poder. Porém, mais importante do que a autonomia política é fazer com que a sociedade perceba a diferença e entenda o quanto isso pode ser útil em seu crescimento. Um veículo que de comunicação, ainda que ancorado em sólido aporte de recursos, não sobrevive sem a sinergia do leitor. Por ironia das coisas, o “Cidade de Viana”, que nascera de uma exceção, sucumbiu à regra.

*Jornalista - artigo publicado em 28/12/2014, no Jornal Pequeno

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